quarta-feira, 26 de junho de 2024

No Balanço da Rede - Carlos Filho

O Futuro Pelas Almas Atuais

Em uma dissertação de mestrado da universidade de Cambridge, elaborado pelo estudante Kenneth John Freeman no ano de 1907, é narrado o trecho que, em livre tradução, aparentemente, argumentava contra o “afrouxamento” na educação dos jovens:

A nossa juventude adora o luxo, desprezo pela autoridade, desrespeito aos mais velhos e amor pela conversa em vez do exercício. As crianças começaram a ser os tiranos, e não os escravos, das suas famílias. Eles não se levantavam mais quando um ancião entrava na sala; contradiziam os pais, conversavam diante de convidados, devoravam as guloseimas da mesa e cometiam diversas ofensas aos gostos helênicos, como cruzar as pernas”.

Posteriormente, por motivos que desconheço, estas palavras foram sendo publicadas e atribuídas nos jornais americanos no decorrer do século XXI, e mais recentemente a internet, aos filósofos gregos Sócrates e Platão.

Pois bem, além das origens, é fato que elas revelam um sintoma: O conflito de gerações! Desde sempre, principalmente aqui no Nordeste onde a Tradição (e isso envolve muitos aspectos culturais) é fortíssima, e a gente escuta os mais velhos, desde sempre, criticando a juventude e falando a célebre e reacionária frase “no meu tempo era melhor”! Em termos sociais, mente todo aquele que faz uso dessa afirmação abraçando a sua individualidade e esquecendo do coletivo. Em termos de cultura, mente quem diz que nossa cultura está se esvaindo, se perdendo!

Essa afirmação se torna pior quando esta percepção é propagada por aqueles que dizem ter um “bom gosto cultural”, mas que muitas vezes possuem uma opinião formada a partir da mistura do congelamento mental com o ressentimento, pois muitas vezes estes críticos são totalmente ignorados em seus cenários de atuação.  Botar o pé na rua, procurar, pesquisar e conhecer dá trabalho e esse povo reclamão, constantemente, é mais preguiçoso do que defensor da cultura de seu povo. Vive enclausurado, relembrando as experiências individuais que viveu no passado e pouco se procura em conhecer o que está sendo produzido além do que lhe é entregue pelos meios de comunicação de massa!

Há sempre cultura de qualidade sendo produzida no mundo, sempre houve e sempre haverá enquanto existirmos neste planeta, assim como haverá sempre a de baixa qualidade. Mas voltando ao passado e focalizando no Nordeste brasileiro, onde inúmeros conterrâneos nossos vivem com suas mentes, eu aponto o óbvio: o nosso gênio maior, Luiz Gonzaga, não existia antes da década de 40 no cenário cultural nordestino, ou seja, esta tão celebrada Tradição possui 80 anos, bem dizer duas gerações! Lembro também que quando Luiz apareceu com a novidade do Baião, e com a criação do trio pé-de-serra, foi execrado de tudo que é adjetivo que não presta, por muitos "entendidos" que não aceitavam aquela novidade, tanto entre o povo nordestino como nacionalmente. Mas ele sobreviveu, pois como dizia por aí o inglês Thomas Morus, autor do clássico do medievo europeu “Utopia”: “A tradição não é reter as cinzas, mas sim transmitir a chama adiante”. Luiz não se reteve, se adaptou e levou a chama das suas tradições, tudo que caracteriza o seu povo, adiante. Todavia levou com uma nova roupagem e com novas ferramentas e eu provo isso:

Talvez nem todos atentem para isso, mas a sanfona não é um instrumento, diferente de violas, rabecas, flautas e tambores, que estão no Brasil desde o início de sua formação e, consequentemente, na formação do Nordeste. Pelo contrário, a sanfona adentrou em nosso país pelo Rio Grande do Sul, conforme afirma Renato Almeida no livro História da Música Brasileira, com os colonos italianos e alemães na segunda metade do século XIX. Sendo levada, posteriormente, ao Norte por soldados nordestinos que lutaram na guerra do Paraguai, em 1864-70, possivelmente, a sanfona de oito baixos por ser mais simples e barata. Aqui a Sanfona não ganhou os grandes salões e sim as pobres choupanas sertanejas, fato esse que nos leva a crer que o afamado Januário, pai de Luiz Gonzaga, seja talvez da segunda geração de sanfoneiros do Nordeste. Bom, mas o que quero dizer com isso? Quero mostrar quando Luiz começou a tocar “as coisinhas do Norte” lá pelo Sul, com sua sanfona de 120 baixos, que até então só tocava valsas e polcas, foi um assombro! A Sanfona de 120, ou mais, baixos, foi adaptada, em conjunto com o triangulo e a zabumba, para o que Luiz queria tocar!

Luiz Gonzaga na década de 40

Então, meu elevadíssimo Leitor, esse papo de que o passado está associado a qualidade e o novo ou presente está associado ao que não presta é uma visão ruim, rasa, idiota e preguiçosa. Há lixo cultural hoje tão ruins quanto os da década de 40 e há riquezas culturais hoje tão boas quanto na década de 40. Quem ditará a qualidade de qualquer coisa que se produza é o senhor do infinito, o Tempo! Hoje, eu sou da opinião que precisamos sempre exercitar o conhecimento e lutar constantemente com o preconceito das nossas vistas e mentes. Pois, se algum Luiz Gonzaga aparecer por aí, eu quero estar atento!

E foi assim, com os olhos sempre atentos, que, na plataforma do Instagram, conheci Carlos Filho. Era fevereiro e ele estava tocando, em um de seus tantos vídeos postados, um Frevo de Capiba. Eu sou um homem de paixões, não nego isso e nem muito menos a minha intensidade, sendo assim, confesso também que me apaixonei por aquele cabeludo que tão magnificamente tocava em seu violão composições do mestre de Surubim.

Carlos Filho

Carlos executava, com uma delicadeza incrivelmente única, aquelas músicas que muitas vezes passam despercebidas entre as algazarras das fanfarras e dos blocos. Ele me apresentou ali, com seu violão e sua tenra voz, por mais que eu já conhecesse algo, o Frevo-Canção e me revelou como a nossa cultura brasileira é repleta de facetas desconhecidas. Minha mãe me disse certa vez: “Meu filho, vai chegar um tempo em sua vida que você verá coisas que outras pessoas não enxergam”. Bom, a primeira vez que bati o olho em Carlos eu vi que não estava diante de mais um dos tantos vídeos artísticos que passam diante da “timeline” dos nossos “smartphones”. Fuçando e olhando outros vídeos dele, eu tive a certeza de que estava diante de um novo Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Ednardo etc.

Carlos e seu Violão em um dos seus vídeos no Instagram

Cito estes artistas para que o elevadíssimo Leitor possa ter a exata noção do impacto que a visão de Carlos me causou. Pois, assim como estes grandes vultos nordestinos, vejo que Carlos carrega a chama que eles carregaram e carregam. E foi diante desta percepção que, não constando história, o convidei para uma live que conduzo no meu perfil do Instagram: o Café com Live. Para minha sorte ele aceitou e assim, como desconhecidos, mas unidos pela gana de falar, fazer e de conversar sobre cultura, nós fizemos a live. Clique no link abaixo para assistir:


Por pouco mais de duas horas conversamos sobre diversos temas e pude conhecer bem mais aquele “cabra-bom” que eu já admirava.  Carlos é natural da cidade de Serra Talhada. Autodidata, o nosso cantor começou muito cedo a demonstrar seu interesse e sua aptidão pela música. Dono de um timbre de voz inconfundível, e de um bom gosto musical excepcional, desde o primeiro momento ele me pareceu mais um fruto, raro e precioso, desta frondosa árvore chamada Pernambuco. E como se não bastasse a belíssima voz, o danado ainda toca o violão, o piano e é compositor!

No entanto, foi a sua voz que o levou para o programa The Voice, da Rede Globo! Carlos já se apresentava em várias casas do Recife, onde mora há quase 20 anos, com grupos como Bandavoou, Estesia e Orquestra Malassombro. Também já se apresentava no Marco Zero, para uma multidão de espectadores, anualmente, no tradicional espetáculo natalino Baile do Menino Deus. Dessa forma, ele já era conhecido na cena recifense, mas ao participar de um programa de vulto nacional, ele desponta. No The Voice encanta a todos em sua “audição as cegas” cantado magistralmente Enquanto Engomo a Calça, do cearense Ednardo, e tem várias “cadeiras viradas” escolhendo por fim o time do cantor Lulu Santos.

Carlos Filho no Programa The Voice, da Rede Globo

Para tristeza da imensa torcida, após várias etapas, o “cabra-de-serra-talhada” é eliminado, não por outros oponentes, mas pela gripe. Carlos deixa o programa e deixa em todos nós um gostinho de “quero mais”. Passado todo fuzuê do programa e hoje ciente de suas grandes e únicas qualidades, Carlos me confessou, provocado por mim, na Festa de Louro de 2023 onde nos encontramos: “Eu ia ganhar o programa”! Estou narrando isso aqui, primeiro porque tenho o “bucho furado” (riso) e em segundo lugar para mostrar que quando estamos cientes do que somos e do representamos essa coisa de modéstia é relativa demais!

E foi justamente nesta festa poética e pajeuzeira, a Festa de Louro, que eu e Carlos nos aproximamos e nos conhecemos melhor. Pude ver um cabra pôr vezes inocente e gentil, pôr vezes brincalhão e maldoso, e pôr muitas vezes generoso. Os meses passam e, após este encontro, conversamos mais algumas vezes pelo whatsapp, até que numa destas conversas Carlos comunica que vem à capital da Paraíba a passeio. O recebo na minha casa e, para minha surpresa, ele vem acompanhado de toda sua família. Conversamos um bocado, brincamos outro tanto e por fim lhe entreguei o meu livro. No dia seguinte recebo uma mensagem dele: “Acabei de ler teu livro”. O que ele não sabe é do bem que me fez quando me mandou essa mensagem. Independente se gostou ou não do livro, ele teve a consideração de ler e isso é o que importa. Pois, me informando isso Carlos revelou que havia se concluído mais um elo entre a mente criadora e a mente receptora e é justamente sobre isso que vim escrever aqui!

Carlos Filho e Igor Gregório

Há algumas semanas soube, pelas plataformas digitais, que Carlos havia lançado seu primeiro álbum solo: o Baile Brasileiro! Antes de adentrar neste universo particular, gostaria de observar que pouco tempo antes do álbum Carlos realizou, com Giuliano Eriston, um concerto no Cinetreatro São Luiz (link abaixo), no Ceará, que, buscando uma referência, a meu ver, pode ser comparado facilmente ao encontro de Alceu Valença e Geraldo Azevedo no disco Quadrafônico!

Carlos nunca negou a influência pesada do Forró sobre sua personalidade artística, mas pelo que ouvi dele, houve, por um tempo, certa relutância em assumi-la. Ao lançar este álbum, primeiro ele expõe a coragem em botar no mundo um produto completo ao invés desse negócio minguado e pouco criativo chamado EP que os artistas musicais abraçaram hoje em dia. Em segundo lugar expõe a coragem de assumir seu lado “gonzagueano” ao trazer o forró tradicional repleto de referências que, mescladas, o tornam original.

Link para o álbum Baile Brasileiro, Carlos Filho (2024)

A primeira faixa do álbum é Aboio, Afeto y Recanto, que me encanta e me apresenta o que vem pela frente. O que observei a princípio foi a letra “y” sendo utilizada como vogal. O que pode parecer um traço estético moderno, na verdade se trata, pelo que pude deduzir, de uma referência aos textos antigos, textos que remetem a nossa colonização, onde a língua espanhola exercia ainda uma grande influência na portuguesa. Dessa forma, esta pequena referência me remete logo à Tradição, me dando um "spoiler" o que vem pela frente. E confirmando esse achismo, ao dar o play, sou levado pela bela voz de Carlos a um “aboio de apresentação”, a uma “loa de chegança”, a uma “uma estrofe de anunciação de um Maracatu”, que irá servir de abre-alas para todo sentimento proposto no projeto! Nesta faixa, e nas demais, a voz inconfundível do nosso serratalhadense é acompanhada pela sanfona do também jovem, talentoso e paraibano de Umbuzeiro, Felipe Costta.

Carlos Filho e Felipe Costta

Logo após vem a faixa Barraco na Ribeira. Escrita por Giuliano Eriston, vencedor da edição do The Voice em que Carlos foi eliminado, a música coloca todo mundo para dançar com um pé-de-serra bem sanfonado e ritmado. Sendo sincero e fiel as minhas preferências, confesso que não curto muito quando a poesia e o texto da música tentam emular o linguajar do povo. O povo não erra o português porque lhe é natural ou intrínseco, mas por uma falta de estrutura da sociedade que faz com que ele não tenha acesso devido à educação. Então quando pessoas, que possuem tal acesso, simulam o linguajar do povo, ao meu julgamento, fazem uma espécie de caricatura. Mas como disse, essa é uma opinião geral minha e de forma alguma prejudica a experiência musical da faixa em questão.

Depois de colocar o povo para dançar, vem a canção Cuidar de Mim. Composta por Ítallo Costa, também ele cantor e compositor da nova geração nordestina, a música nos traz um daqueles xotes que colocam a gente pra dançar, mas dessa vez agarradinho, devagar e ainda pensando, entre os arrastados da chinela, nos amores e desamores que a gente viveu. Bom demais!

É aí que nos retorna Giuliano Eriston com outra composição: Devagar, Meu Bem. Com uma poesia delicada e com o português correto, mas sem com isso se distanciar dos maneirismos que caracterizam os nordestinos, como no verso que diz “vida é rede de balançar” e como no sotaque acentuado de Carlos que já embeleza tudo de nordestinidade, a música brilha. A poesia ainda está envolta duma melodia gostosíssima, pontuada pelos excelentes solos de sanfona de Felipe Costta.

Na quinta faixa do álbum, Maçã do Rosto, Carlos me reapresenta uma canção que havia passado despercebida por mim ao ouvir o disco A Voz, o Violão, a Música de Djavan, confesso. “O Deus das Alagoas”, como disse Mano Brown em seu podcast, é um mestre da palavra e mais ainda da interpretação destas palavras. Sendo assim, é sempre perigoso quando nos colocamos ao lado destas entidades. No entanto, a interpretação de Carlos, além de dar luz a esta canção, me trouxe uma nordestinidade e uma qualidade vocal bem mais elaborada do que na primeira versão. A comparação é inevitável, mas não é maléfica. Acho que ela, neste caso, mais une do que separa. E eu já aguardo ansiosamente a versão ao vivo da canção com a participação de Djavan!

A Voz, o Violão, a Música de Djavan

Na penúltima faixa do álbum, sentindo já um gostinho de saudade, se apresenta a canção Tu Vai Ver. Composta em parceria com Giuliano, Carlos divide o vocal da canção com Sarah Leandro, filha do valiosíssimo Flavio Leandro, oriunda do município de Bodocó. Não sei por que, mas essa canção me lembrou um bocado as canções do mestre Petrúcio Amorim. Ela é uma daquelas músicas que a gente aumenta o volume do rádio e canta junto, como Meu Cenário, Anjo Querubim, Filho do Dono, Tareco e Mariola e tantas outras canções fortes e marcantes!

Chegando à última faixa, Forró pra Tia Lila, e ao final deste lindo passeio forrozeiro, temos uma canção instrumental que se despede do ouvinte fazendo um carinho em sua alma. Deixando na gente aquele choramingado feliz de saudade que todos nós sentimos ao nos despedimos dos nossos queridos, geralmente na cozinha de casa, que nos visitam para um café regado à boas histórias e muitas risadas.

Agora, neste ponto, me vejo no final desta longa coluna em homenagem ao meu querido Carlos Filho reafirmando, e ressentindo, o que já disse em seu começo: A nossa cultura não está se perdendo ou acabando. Ela está se renovando nas mentes de Carlos, Giuliano, Felipe, Ítallo, Sarah e tantos outros que amam esse nordeste do mesmo tanto que eu amo. 

Quem mantém a cultura viva é o povo. Ele faz e consome a própria cultura. A cultura do povo não está nos grandes festivais de música porque o povo de verdade não está lá, onde a maioria destes saudosistas que citei vivem, o povo está produzindo sua cultura onde sempre produziu, nas suas localidades, rurais ou urbanas. Pois me diga quem faz todos os anos o festival de Quadrilhas Juninas brilhar? Quem faz todos os anos o desfile de Ala-Ursas alegrar tantas crianças paraibanas? Quem faz todos os anos os desfiles de Maracatu mostrarem sua realeza pelas ruas do Recife? Eu respondo: O povo!

A juventude no desfile do Maracatu

Semana passada fui à uma cantoria, legítima, de pé-de-parede, num bairro periférico aqui da capital da Paraíba, e não vi nenhum destes defensores da tradição e da cultura lá. Pelo contrário, vi o povo! Sendo assim, meu elevadíssimo Leitor, eu estou tranquilo por observar que a chama da nossa cultura está viva e sendo levada à frente por Carlos Filho e inúmeros jovens que eu poderia passar o dia aqui citando. Estou tranquilo ao observar a vontade dele de produzir sem perder o que lhe faz único: As referências de sua Tradição! Estou tranquilo em saber que no futuro meu filho terá música de qualidade para escutar. Só não estou mais tranquilo porque, eu, como um legítimo e orgulhoso paraibano, tive que passar todo esse texto elogiando um pernambucano (risos)!


quarta-feira, 22 de maio de 2024

Cada Soneto Um Moído - Autofagia

 

O Presente em Pensamentos e Sonetos

Acredito que um dos elementos mais fantásticos e divertidos do livro Deuses Americanos, do escritor inglês Neil Gaiman, é o fato do autor transformar “conceitos” da nossa sociedade, e do nosso mundo, em Deuses. Por exemplo: Como vivemos adorando a televisão, os celulares e computadores e a internet, a Mídia se torna um Deus, pois nós a veneramos diariamente lhe dando o nosso tempo, os nossos esforços, a nossa vida! Se você acha que esse é um conceito absurdo ou fantasioso, então basta constatar quantas pessoas são “dadas” em sacrifício constantemente a essa Deusa a partir do momento em que morremos em acidentes de trânsito ocasionados pelo simples fato de checar as notificações das redes sociais.

Este não é um conceito novo nem para o autor inglês, que já o havia explorado na séria de quadrinhos Sandman, nem em nossa história humana. Desde a antiguidade criamos e adoramos deuses! As forças da Natureza, por exemplo, já tiveram seus momentos de adoração em nosso percurso neste planeta. No entanto todos eles já foram esquecidos, com exceção de um: o Tempo!

Sempre achei que o Tempo seria o próprio Deus de Abraão. Sempre achei que seria ele o Deus dos Deuses imperando inconteste sobre todos os outros deuses. Sempre achei, desde muito cedo, que o Tempo é o deus que expõe claramente a nossa fragilidade humana, e diante dele percebemos que não somos nada.

Por este motivo, mesmo sem querer, veneramos o Tempo, pois, como afirmava o filósofo romano Seneca, "nós desperdiçamos nosso tempo com frivolidades, dando mais valor ao ouro a conquistar, ou conquistado, do que ao bem mais preciosos que temos, o Tempo. Negamos uma moeda a um mendigo, mas oferecemos, distribuímos, gastamos, o nosso valioso tempo com a mais rala interação social ou a mais potente das procrastinações". Então, quando nos damos conta, acabou-se o tempo e nem todo dinheiro do mundo compra mais dias de vida. É ai que imploramos, rezamos e choramos por mais horas, minutos e segundos. Mas a nossa adoração é falha, contraditória, infiel e bandoleira, e este Deus, solitário e universal, é impiedoso!

Autofagia

Corre o Tempo nas linhas da História
como um verso correndo na magia.
Quem será que conduz a trajetória?
Quem será que declama a poesia?

Sente o Tempo desgraça em demasia,
pois na face da Morte há sua glória!
Cada Vida, passada em sangria,
só comprova a perene palmatória:

Vai o Tempo cortando cada hora,
mas o corte lhe fere em sincronismo
demonstrando que faz os seus papéis.

Chora o Tempo sozinho na Aurora!
Sem olhares. Perdido no abismo,
como um Deus esquecido por fiéis!

Clique no link abaixo para ouvir este soneto declamado:






quarta-feira, 10 de abril de 2024

Retalhos do Jornal - Taquigrafando Cantadores

O Passado nas Páginas dos Jornais

Umas das coisas que me encantam nos verdadeiros e bons apologistas da Cantoria de Viola Nordestina, aqueles que não somente conhecem, mas que também estudam o tema, é sempre descobrir um modo de aquele verso incrível, feito de improviso da cantoria, permanecer pulsando nas veias do tempo.

Data do Retalho: Terça-feira, 8 de abril de 1952

Jornal: O Norte

Título do Retalho: Taquigrafando Cantadores

Autor: Hélio Zenaide

Buscando essa imortalização poética, muitas cantorias viraram Folhetos de Cordel para correrem o mundo-sertão em um tempo em que não se tinha gravadores. Há famosas batalhas contadas e recontadas nas páginas folhetescas como a disputa de Inácio da Catingueira e Romano do Teixeira, a do Cego Aderaldo e Zé Pretinho, a de Antônio Marinho e Pinto do Monteiro etc.


Já outras pelejas foram memorizadas, muitas vezes por completo, por mentes prodigiosas! A mais famosa de todas estas mentes é a de Zé de Cazuza. Como disse uma neta dele em entrevista: “Parece que Vovô tem um juízo sobrando, pois decora os versos dele e dos cantadores”. Zé de Cazuza, O Gravador Humano, que, além de gravador, é poeta-repentista, afirmou certa vez: “Parei de gravar versos quando o gravador elétrico chegou”.

Zé de Cazuza, O Gravador Humano

E quando os gravadores elétricos chegaram, incontáveis cantorias foram registradas. No começo, por quem podia arcar com o preço dos equipamentos, mas com a popularização da tecnologia vários entusiastas da Arte do Improviso puderam registrar as memoráveis cantorias com os gravadores portáteis.

Hoje, a gente não precisa nem ir até a cantoria! Elas estão sendo transmitidas na internet, em tempo real. E ficam gravadas automaticamente nas plataformas de vídeo. Podem ser assistidas e reassistidas quando o ouvinte desejar e onde desejar. Um exemplo maravilhoso é o canal do Clube do Repente que transmite cantorias de primeira qualidade já há muitos anos. Link para o canal: Clube do Repente

Dando um passo atrás no tempo, outra forma peculiar de gravação de momentos humanos, que descobri em minhas pesquisas, foi a Taquigrafia. O conceito? Taquigrafia é o método abreviado ou simbólico de escrita, com o objetivo de melhorar a velocidade do registro em comparação com um método padrão de escrita.

Exemplo de Taquigrafia

Este método, altamente sofisticado, foi utilizado por alguns para registrar discursos, passagem históricas, apresentações, entrevistas e julgamentos ao longo de toda história humana. Mas também foi utilizado por outros para fazer coisa muito melhor do que registrar o falatório monótono e caricato de juízes e políticos: Registrar versos em cantorias! Um Taquígrafo iluminado foi o jornalista, meu conterrâneo, Hélio Zenaide.

Hélio Zenaide

Hélio Nóbrega Zenaide nasceu no dia 26 de outubro de 1926, no Engenho Barra Nova, na cidade de Alagoa Grande, filho de Herectiano Zenaide Nóbrega de Albuquerque e Maria Elvídia Nóbrega Zenaide. Foi casado com D. Ada Tavares Zenaide com quem teve quatro filhos: Maria Valéria, Maria de Nazaré, Eugênio Pacelli e Marina.

Formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela tradicional Faculdade de Direito, em 1954. Iniciou sua carreira como servidor público em 29 de julho de 1949, quando foi nomeado Taquígrafo da Assembleia Legislativa do Estado, fato esse de suma importância para o que vamos revelar no Retalho de hoje. A partir daí exerceu vários cargos públicos no Estado, todos eles de grande relevância: Colunista e diretor de Jornais Impressos, respectivamente O Norte e a União.

Voltando nossa atenção para o Colunista Hélio Zenaide, buscando o acervo do Jornal O Norte, encontrei várias colunas do nobre jornalista intituladas Taquigrafando Cantadores. Qual foi o meu espanto, envolto a outras pesquisas, encontrar, nos arquivos do Jornal O Norte na Hemeroteca Digital, uma coluna sobre um tema que me é tão caro. Confesso que me senti um verdadeiro arqueólogo retirando a poeira do tempo de versos que estavam ali enterrados nos acervos do Jornal. Soterrados por camadas e mais camadas de notícias rotineiras e burocráticas.

A coluna não era rotineira, pelo que percebi, não seguia um dia predeterminado nas folhas do jornal. Ela acontecia quando Hélio ia simplesmente contemplar uma boa cantoria. Ou quando um célebre cantador ou poeta riscava pela capital da Paraíba. Ou quando numa viagem a trabalho Hélio esbarrava com cantadores pelas estradas e bares do estado. Ou ainda quando seu amigo, o grande José Alves Sobrinho, O Cantador Que Perdeu a Voz, o convidava para uma conversa e lhe relatava as peripécias versificadas dos vates sertanejos. Em resumo, a coluna era feita ao acaso dos encontros e talvez essa seja sua verdadeira preciosidade: Ela era feita de repente!

Mas talvez por isso, ou por uma simples questão editorial, pois até o hoje o tema é escanteado, a coluna durou poucos meses. No acervo que consegui encontrar oito registros. E este é o primeiro que vou compartilhar o elevadíssimo leitor:

Jornal O Norte (08.04.1952)

O Retalho acima data de 08 de abril de 1952. Nele, Zenaide relata seu encontro, à beira mar da Praia de Tambaú, com dois cantadores: José Alves Sobrinho e Estrelinha. Interessante observar, e revelo que este será um tema de futuras colunas neste blog, é a participação dos poetas em programas da Rádio Tabajara. No Retalho o jornalista também deixa claro que possui um bom acervo recolhido, deste e de outros encontros, acerca dos “vates populares” e que pretende brindar o leitor com tais registros.

José Alves Sobrinho


Estrelinha é o primeiro cantador em pé da direita para a esquerda

Quando bati os olhos neste registro anotado por Hélio, logo me lembrei do livro Cantadores Com Quem Cantei, de José Alves Sobrinho e fui buscar alguma informação sobre os encontros entre o poeta e o jornalista. Encontrei! Na verdade, o registro data de um período posterior à 1952 onde os cantadores vão à fazenda Bastiões, em Alagoa Grande, do pai de Hélio, o Senhor Herectiano Zenaide. Abaixo o curiosíssimo relato datado de 1953 descrito pelo cantador: 

Logo que cheguei em Campina Grande, recebi o convite do engenheiro Herectiano Zenaide para fazer uma cantoria no dia do almoço que ele ia oferecer aos governadores que haviam tomado parte da mesa-redonda que o governador José Américo realizou em João Pessoa.

Eram oito deles: além do governador da Paraíba, José Américo de Almeida; Sílvio Pedrosa, do Rio Grande do Norte; Paulo Sarazate, do Ceará; Etelvino Lins, de Pernambuco; Silvestre de Góes Monteiro, de Alagoas; o governador da Bahia, que não me recordo o nome; Pedro Ludovico, governador de Goiás. Porém nesse almoço oferecido por Zenaide, na fazenda Bastiões, somente compareceram quatro governadores: o da Paraíba, o do Rio Grande do Norte, o do Ceará e o governador de Goiás. Nessa ilustre comitiva de governadores, vieram o jornalista Assis Chateaubriand e o escritor José Lins do Rego.

Cantamos meia hora, por ocasião do almoço, e ninguém nos deu a mínima atenção; cantamos péssimo. Porém, depois do almoço, viemos para o alpendre da casa da fazenda, onde José Lins do Rego pediu para nós cantarmos mais um pouco porque não nos ouvira na hora do almoço.

No alpendre da fazenda Bastiões, fomos bem escutados especialmente pelo escritor José Lins do Rego, que intimou Assis Chateaubriand a vir assistir a cantoria, dizendo: - Assis, vem cá! Você precisa ouvir isto aqui como nordestino! Com essa atenção, naturalmente cresceu nossa inspiração. Lembro-me bem de duas estrofes, a primeira de Estrelinha, dirigida ao jornalista Assis Chateaubriand, dessa maneira:

Seu Assis Chateaubriand
Tem artigos magistrais
Do Brasil ao estrangeiro
Como ele ninguém faz,
Eu quisera ver meu nome
Nas páginas de seus jornais.

Eu respondi:

Ele é um dos principais
Jornalistas renomados,
Em toda parte do mundo
Seus jornais são respeitados,
Pois é o dono dos Diários
E Rádios Associados.

Assis Chateaubriand depois veio nos cumprimentar eufórico, dizendo a Estrelinha: "Seu nome eu vou mandar para sair no amanhã no 'Diário de Pernambuco'". Em seguida, botou a mão no meu ombro e perguntou-me: - "Quer cantar em rádio?" Respondi que "sim". Ele então tirou um cartão do bolso, escreveu umas linhas e me entregou o dito cartão dizendo para eu mostrar ao diretor da Rádio Borborema de Campina Grande, o Sr. João Bastos. Eu naturalmente fiquei muito contente e até tentei ler o cartão, mas não consegui, tal era a garrancheira da caligrafia. Guardei-o com muito cuidado. O imortal escritor José Lins do Rego caçoou muito comigo, depois disse: "poeta, fale nos nomes dos governadores", que nessa ocasião estavam do lado de lá do alpendre, distante”.

Livro Cantadores Com Quem Cantei (2009), José Alves Sobrinho

Todo esse trecho confirma a ligação de José Alves Sobrinho com a família Zenaide e fortalece as informações descritas por Hélio na sua coluna. E nela também podemos constatar os desatualizados e esquecíveis versos de Luiz Dantas Quesado sobre o beijo forçado numa mulher. Versos esses que não sobreviveram ao tempo nas bocas e ouvidos dos amantes da poesia nordestina. Luiz Dantas Quesado conforme registrado por Leonardo Mota em seu livro Cantadores, 1921, foi um repentista nascido em 1850 em São João do Rio do Peixe (PB) e que viveu por toda sua vida no Ceará. Os versos registrados por Hélio na verdade não são uma décima (estrofe com dez versos de sete sílabas poéticas) e sim quadrinhas conforme nos comprova Leonardo Mota:

Livro Cantadores (1921), Leonardo Mota

Por outro lado, temos os lindos e eternizados versos de Antônio Pereira de Moraes sobre a Saudade. Como José Alves Sobrinho deixa uma lacuna sobre o autor, a autoria dos versos eu o trago aqui, pois como eu disse, estes versos se eternizaram e são declamados até hoje nas rodas poéticas de todo o Nordeste. Abaixo uma sucinta biografia que encontrei do poeta oculto:

Conhecido como o Poeta da Saudade, Antônio Pereira de Moraes nasceu a 13 de novembro de 1891 em Livramento (PB). Mudou-se logo cedo para o município de Itapetim (PE), onde viveu até a sua morte, a 07 de novembro de 1982. Antônio Pereira de Moraes participava de jornadas de improviso apenas com os amigos e os seus versos sobreviveram ao tempo porque eram repassados verbalmente pelos seus admiradores que os decoravam. Em 1980, com a ajuda de amigos, publicou seu único folheto, “Minhas Saudades”, uma coletânea de sua poesia. Em complemento, deixo o registro valiosíssimo sobre o poeta do Canal do Youtube Bisaco de Doido: Clique aqui!

Da esquerda para a direita os poetas: Zé Marcolino, Manoel Filó e Antônio Pereira

Em complemento aos versos do Retalho, seguem os demais versos do Poeta da Saudade, Antônio Pereira:

Na Roseira da Saudade
tem cinco rosas de cores:
Branco é nada, roxo é raiva,
preto é luta e luta é dores;
Amarelo é desespero
e verde é nossos amores!

Saudade é uma mulher
do cabelo de Retrós*,
parece que foi criada
no leite do Avelós.
Sua rama é muito pouca
e sua sombra cobre nós!

*Retrós é uma linha para costura

Saudade é nada e é tudo,
saudade é como um perfume.
Eu só comparo saudade
com o peso do ciúme
que a gente carrega ele
mas não sabe o volume.

Saudade é a borboleta,
que não conhece a idade.
Se encanta e se desencanta
pra renovar a saudade,
soltando o pelo das asas
cegando a humanidade.

Eu só comparo saudade
com enxerto de Aroeira
que ele nasce e se cria
enrolado na madeira,
de forma que ninguém sabe
quem é a mãe da roseira.

Até mesmo um bicho bruto
sente saudade também,
morre o bezerro e vaca
pelo desgosto que tem.
Se zanga até com o dono
e não dá leite a ninguém.

Quem quiser plantar saudade
primeiro escalde a semente.
Depois plante em lugar seco,
onde bata o sol mais quente.
Pois, se plantar no molhado,
quando nascer mata gente.

Saudade é uma semente
nascida do satisfaz,
depois de estar nascida
se aguar cresce demais
e morrendo depois de velha
o que é que o dono faz?

Saudade é um parafuso
que na rosca quando cai,
Só entra se for torcendo,
porque batendo num vai
e enferrujando dentro
nem distorcendo num sai.

As seis horas a saudade aumenta mais
vagalume já vem de luz acesa,
nesta hora até mesmo a natureza
se condói com as coisas que ela faz!
Um carretel de tristeza ainda mais,
a saudade é quem vem puxando a linha.
Com um retrato de mãe e de madrinha
todas duas chorando a noite ingrata.
É hora que a Saudade mais maltrata
é um dia nublado à tardezinha!

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

No Balanço da Rede - Jennifer Trajano



 

O Futuro Pelas Almas Atuais

O que a paraíba tem me revelado, neste meu bater de asas no céu da literatura, é que, graças aos vultos do passado que servem de inspiração e aos olhos que miram o futuro, a poesia em nossa terra não somente é prolífera, é também coisa de sangue! Acho eu, depois de olhar para os lados, que a palavra Paraíba já deveria ser sinônimo da palavra Poesia! 

No Balanço de hoje trago a vocês uma pessoa que não precisa das minhas apresentações, pois acho eu que todos, que conhecem um pouco do que está sendo produzido aqui na Paraíba no campo literário e poético, já conhecem e admiram esta poetisa.

Jennifer Trajano não somente é uma pessoa que escreve (o que já seria suficiente para este poeta), mas ela também é uma professora de língua portuguesa que propaga a poesia em cada passo de sua trajetória. Carregando seus versos no olhar e a sabedoria em sua boca, ela propaga o conhecimento com seus alunos, tanto os formais quanto nós seus alunos extraclasses.


Jennifer Trajano


Conheci Jennifer pessoalmente em um sarau e posteriormente lhe convidei para uma Live que realizo no Instagram (Vídeo ao final do texto). Muito me interessou aquela poetisa paraibana que possuía, e possui, a admiração de muitos poetas e poetisas da nossa cena. Quis conhecê-la. Conversamos, e eu pude observar de perto aquela jovem moradora da Ilha do Bispo que não somente era ativa nas redes sociais, mas que também se movia artisticamente no mundo offline.

Frisei esta questão do bairro, pois acredito piamente que o mundo ao nosso redor molda o que nós somos e os caminhos que escolhemos percorrer. A Ilha do Bispo é uma localidade de divisa entre os municípios de João Pessoa e Bayeux, e justamente por este motivo é, como todo local de divisa, bastante esquecido pelos poderes públicos. Cortado pela linha do trem que transita nas cidades da “grande João Pessoa” (Cabedelo, Bayeux e Santa Rita) e margeando o Rio Sanhauá, a Ilha do Bispo sempre nos presenteou com uma vocação artística marcada pela presença dos Tabajaras, povos indígenas que habitam a região desde sempre. Em contraste com a riqueza cultural, a pobreza social sempre foi outra marca deste que é um dos bairros mais antigos da nossa capital.

Ala Ursa Piragibe da Ilha do Bispo

Dessa forma, tenho plena certeza de que estas marcas estão tanto na trajetória de Jennifer quanto na sua poesia. Para afirmar isto busco duas referências. A primeira é a entrevista ao programa Literato da TV Cidade João Pessoa, em que ela afirma: “Eu fui a primeira pessoa da minha família a ter uma graduação, um curso superior”. A segunda é o poema que ela compôs em homenagem ao seu pai:

pedaço

a meu pai, Luiz Alberto Cavalcanti Lima

naquele tempo

em que eu não tinha

metade da tua altura

as tuas mãos

no guidom

me equilibravam


naquele tempo

em que eu tinha quase

metade da tua altura

teus pés pedalavam

meu caminho

até à escola


e todas as tarde

eram pintadas

com a cor vermelha

da bicicleta, tão forte

quanto a tua cor

nesse tempo aquarelado


hoje continuo o cântico

das duas rodas:

pedalo até o dia

em que eu tinha

metade da tua altura

e lembro do teu riso


manchado de poucos

dentes e cheio de graxa

graça que ultrapassava

o tempo

em que eu não tinha

metade da tua altura


hoje possuo

a mesma altura tua

e choro de amor

porque recordo todo

tamanho das tua mãos

que me subiam â bicicleta


sabendo que me deste

altura à altura

do que és

e te amo

com todo a certeza

de que fazes parte


de todos

os meus

tamanhos

[do andados

à

bicicleta]


neste tempo ultrapassado

que não passa

em que eu tenho

de ti internamente

mais da segunda

metade da altura tua


Estas duas referências demonstram uma cidadã que não tem medo de expor suas raízes e uma poetisa que, mesmo presente em sua localidade, precisa se aventurar em outros meios para cada vez mais evoluir como artista. Este é meu tipo de pessoa! Posso estar redondamente enganado em relação ao que estou afirmando, mas é esta a minha percepção após os meus contatos e as minhas pesquisas acerca de Jennifer.

Como citada anteriormente, eu realizei uma Live com a poetisa. Em nosso bate-papo encontrei uma pessoa simples, alegre e altamente inteligente. Após o encontro, devido a pandemia que nos assolava me impedir de adquirir antes, busquei o seu primeiro livro de poesias: Latíbulos (Editora Escaleras- 2019).


O livro, como muito bem explica a autora em sua entrevista ao programa Literato, tem sua divisão igualmente a uma missa, todavia a sacralidade é quebrada por poemas que não somente provocam, como também fervem os pecados de cada leitor. Latíbulos, ou seja, lugar onde moram os Deuses, ou também, lugar escondido, pode, na minha concepção, ser um lugar onde os poemas (os Deuses) estão escondidos, como também pode fazer uma alusão direta ao local de origem da poetisa, a Ilha do Bispo. Afinal, quase tudo cabe no ocultismo poético, desde ilhas a interpretações malucas. Abaixo alguns dos meus poemas favoritos do livro:

Varadouro


novela na tv

olhos na tela

cortinas amarradas

crateras no piso

da panela

- formigas em papel

Jesus de papel

brilhando na parede

volume alto

salto silêncio

de um gato

Dona Maria

da Dores

dorme sem notar

e os pirralhos correm

notando a rua

depois ela sai

para gritar

com a lua

que os respinga

sobre a terra


Passos


quando astros de galáxias

distante colidirem a olho nu

e a noite não menstruar a lua


quando pirâmides enquadrarem

arranha-céus e rasgando os céus

faraós aos seus postos retornarem


quando rainhas vikings saquearem

Jerusalém à sombra das oliveiras

e o santo graal jogarem ao mar


quando negras da época matarem

a branca escravidão com a força

da palavra de Conceição Evaristo


quando Dionísio não embriagar

 o eu-lírico de Hilda Hilst

só assim, Deus, tu virás a mim


Vejo que Jeniffer, como qualquer pessoa de discernimento, se permite evoluir. Buscando aqui as “Metamorfoses Necessárias da Vida” elaborada pelo filósofo Friedrich Nietzsche, vejo que a nossa poetisa passou, como a maioria de nós, pela fase do Camelo, fase em que precisamos, quando crianças, fazer reverência à tradição e seguir as “normas” estabelecidas pelos múltiplos poderes podadores. Porém, com seu livro Latíbulos, Jennifer rompe com o Camelo e abraça o Leão, momento em que há uma fragmentação da norma e que o espírito se permite a liberdade de conhecer a descrença (no sentido de duvidar e questionar tudo). Sendo assim, passando pelas duas fases iniciais da vida, a poetisa, segundo a teoria de Nietzsche, chega a fase da Criança. O termo parece contraditório, mas na verdade revela a afirmação da vida. É o momento em que o indivíduo encontra a potência e a liberdade da vontade, por isso o termo simbólico da Criança. Dessa forma, já adulta e plena de suas vontades e seus deveres, Jennifer lança o livro Diga aos Brancos que Não Vou:


Aqui encontramos a evolução citada, em que a poetisa deixa de olhar para dentro e começa abraçar o mundo. Ela nos traz poemas que representam múltiplas vozes e causas. Poemas que são eficientes em incomodar e em perturbar aqueles que ainda não realizaram suas metamorfoses e que continuam abraçados ao Camelo ou ao Leão. Não estou aqui dizendo que Jennifer concluiu seu ciclo e que ela é um sinônimo de sapiência e da perfeição humana. Talvez seja (risos). Mas o que quero dizer é que, na busca pela evolução do Ser, ela já está em um platô elevado e que agora caminha e constrói neste espaço. Abaixo os poemas que mais me tocaram no livro:


Povoação Índio Piragibe


há mentes ilhadas

na pedra-corpo

do Piragibe


todavia, há vias

às margens da via

oeste das vistas


a vir do mangue:

aqui o ba(i)rro é

de indígena, não de bispo


pátria


pela manhã vovó

mandava mainha

cozinhar congeladas

estrelas celestes

e as constelações

faziam brilhar

o fervor nas panelas


um dia nero visitou nosso céu

em tempo de cana com mel

e não havia ave

dormindo na

cadeira de balanço

ou vela de sétimo dia

para o gato na parede


então a comida queimou

e os corpos ficaram

pro dobrar os panos

e enterrado no quintal

o ventre da casa

que nunca foi nossa

perdeu o bebê


Gostaria de deixar bem claro que tudo que estou escrevendo aqui são as minhas percepções de Jennifer e que logicamente elas podem estar contaminadas pela minha admiração e a pela minha amizade poética. Mas um fato inegável é a grandeza desta que, sem dúvida nenhuma (me utilizando da personalidade profética dos poetas) será uma das grandes escritoras da nossa Paraíba. Sim, grande escritora. Pois, deixando um pouco os versos de lado, sem deixar a poesia, e se aventurando na prosa, em 2023 Jennifer lançou o seu primeiro livro de contos, o Pequenas Ampulhetas. Como, por falha minha, ainda não li o livro, deixo abaixo a excelente matéria do Jornal União sobre:


Repito constantemente, em todo lugar em que minha voz se faz presente, que gosto de gente que faz! Sou um admirador empolgadíssimo daqueles que, mesmo não estando totalmente lapidados (acho que nunca estaremos), metem a cara à tapa e gritam ao mundo suas belas verdades. Jennifer, as poucas vezes em que conversamos, me revelou isto: Verdade! Então nada mais posso dizer a ela além de um sincero e carinhoso: Continue, poetisa!




quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Cada Soneto Um Moído - Cria

O Presente em Pensamentos e Sonetos

 

Eu não tive pai. Meu pai não me assumiu como filho, por diversas circunstâncias que não vêm ao caso agora. Fui criado pela minha mãe, tias e avó. Não ter um pai não me causou nenhum trauma permanente, pois como eu nunca tive a presença dele, eu nunca senti falta. Em alguns momentos da infância e, posteriormente, na vida adulta senti a falta de uma figura masculina para me dar apoio. Todavia, foram necessidades momentâneas que rapidamente foram sanadas pela minha constante necessidade de seguir em frente.

Em 19 de Abril de 2022, meu filho Joaquim Gregório veio ao mundo. A parti do momento que ele saiu da barriga da mãe, eu amei. Palavra! Nunca senti o que sinto por ele por nenhum outro ser humano com quem convivi neste planeta. Várias vezes digo que a poesia me salva, essa foi uma delas. Joaquim era e é poesia viva. Seus olhos são meus guias. Por causa dele, eu sou o maior covarde do mundo, repleto de medos e receios. Por causa dele, eu sou o homem mais valente do mundo, disposto a tudo para protege-lo. E quando digo tudo, é tudo mesmo. Ele tem a minha vida em suas mãos e por ele abdico dos meus sonhos e passo a reconstrui-los ao seu lado. Ele é meu filho e eu sou o pai dele. Depois da morte, esta é minha única certeza nesta vida.

Dito isto, depois do nascimento de Joaquim comecei a me questionar: Como um homem pode ter um filho, ter um amor deste tamanho a sua disposição, e não usufruir? Como pode um homem abandonar um filho? Por que o meu pai me abandonou? Por que ele não sentiu por mim, o que eu sinto por Joaquim?

Foi diante destes questionamentos que fui procurar o meu pai. Descobri que ele estava morto há oito anos. Também descobri três irmãos. Descobri novos primos, tios e avós. Entrei em contato com algumas tias, irmãs do meu pai, após um longo período de indecisão. Para minha surpresa elas foram bastante receptivas e ainda hoje mantenho boas relações com elas. Meus irmãos não querem contato comigo. Normal, afinal eu sou um bastardo.

Falei para minhas tias que o motivo da procura eram os questionamentos citados acima. Elas entenderam e até me disseram que foi bom eu não ter tido contato com o meu pai. Me revelaram que ele não tinha sido um pai carinhoso e atencioso, provavelmente, acham elas, por ele não ter recebido isto do seu pai. Ele era um provedor e nada mais. Depois de todos estes encontros e depois de várias informações assimiladas, eu senti orgulho de mim.

Apesar de tudo que ocorreu em minha vida, e de todo ressentimento que eu poderia ter guardado, eu quebrei o ciclo! Eu não sou o meu pai. Sou o melhor pai que eu posso ser para Joaquim. Quero não somente estar presente em sua criação, eu quero que ele saiba que qualquer futuro que ele escolha percorrer eu estarei ao lado dele. Eu sou um homem quebrado e sei o quanto é duro juntar os pedaços de uma vida de sucessivas pancadas, é por este motivo que não quero quebrar a vida de ninguém, muito menos do meu filho.

Hoje tenho a plena convicção que todos os pais (mãe e pai) são as criaturas mais abençoadas da terra por poderem observar diariamente uma vida se desenvolver. Criar um filho é uma aventura sagrada (no sentindo mais puro da palavra) e que constantemente nos engrandece.

Cria

Perco a dor de existir nos meus degredos

quando brilho nos olhos do meu filho!

Pulsa vida e meu pranto desvencilho

no sorriso que quer os seus brinquedos.

 

Que doçura ter lúdicos segredos

que no chão, junto a ele, compartilho.

E por ele me podo e me humilho,

pois eu sou um devedor dos seus enredos!

 

O meu sonho se perde convertido

em menores deleites sem valor.

Só meu verso tem firme se mantido,

 

revelando a matriz do seu frescor:

Toda noite a Poesia tem dormido

nos meus braços, coberta de Amor!


Clique no link abaixo para ouvir este soneto declamado:




quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Retalhos do Jornal - Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, na Capital da Paraíba

 

O Passado nas Páginas dos Jornais

Me recordo claramente dos três primeiros momentos em que ouvi as canções do Rei do Baião, talvez o único rei legítimo da música brasileira, Seu Luiz Gonzaga. Sim, destaco três, pois vieram encarrilhados: Um alegre, um familiar e um triste!

Sei que isso é um assunto pessoal, mas confia em mim, tem tudo a ver com o Retalho de Hoje!

Data do Retalho: Terça-feira, 14 de abril de 1953

Jornal: O Norte

Título do Retalho: Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, na Capital da Paraíba

Autor: Desconhecido

O ano era 1996, eu estava lá com meus oito anos de idade. Este ano me marcou demais, pois vários perrengues, que não vêm ao caso, ocorreram, de formas que tenho vivida a memória dos acontecimentos naquele período. Sendo assim, o primeiro momento em que ouvi os acordes do Baião foram em junho, do ano citado, na quadrilha junina da escola.

Eu já havia participado antes desse momento de quadrilhas escolares, porém, devido ao que relatei, a recordação da deste ano traçou um risco em minha mente. Na festa, dividindo espaço com o sucesso da época, a Banda Matruz com Leite, escutei Seu Luiz cantando Riacho do Navio. Me lembro bem da minha curiosidade, não sanada na época, em querer saber que lugares era aqueles narrados na poesia. E que maluquice era aquela de um peixe querer sair do mar e voltar para o rio?

“Riacho do Navio

Corre pro Pajeú

O rio Pajeú vai despejar

No São Francisco

O rio São Francisco

Vai bater no meio do mar”


Já citei em outras colunas do meu encanto por romances e filmes de cavalaria. De algum modo, estes versos me lembravam essas histórias. Com nomes estranhos como "Riacho do Navio", que descreviam localidades distantes e mitificadas como "Pajeú", tudo aquilo acendia a centelha da fantasia na mente daquele menino sonhador que crescia nas ruas da cidade de Bayeux e que pouco tinha contato com o Sertão. Neste primeiro contato memorizado com a música do Velho-Lua, eu abracei a felicidade que seu ritmo oferecia e toda magia atemporal e oculta que há em suas melodias.

O segundo momento, ainda no mesmo mês junino, foi em uma viagem para o Sertão de que minha família é oriunda: O Casserengue. Íamos todos (primos, tias, avós) para casa de Tia Nina, irmã do meu Bisavô Manu. A casa dela ficava, e fica, localizada na zona rural do pequeno município. Lugar seco, pedregoso e castigado, que tem seu clima mais ligado a região árida do Curimataú do que a região Brejeira dos seus vizinhos úmidos, os municípios de Solânea e Bananeiras.

Recentemente, descobri que minha família está naquela região há mais de 250 anos, o que me enche de orgulho. Foram pequenos agricultores que em certo momento migraram para capital do estado. Mas foi lá, no Sítio Bolhões, entre conversas e brincadeiras, cercado de facheiros, palmas, agaves, rezes, bodes, galinhas, do sol poente e da fogueira que crepitava forte na frente da casa Tia Nina, que ouvi seu Luiz Gonzaga cantarolar lamentosamente:

“Numa tarde bem tristonha

Gado muge sem parar

Lamentando seu vaqueiro

Que não vem mais aboiar

Não vem mais aboiar

Tão dolente a cantar”


O terceiro momento em que o Gonzagão riscou na minha lembrança foi em uma reportagem, do programa Fantástico da Rede Globo, naquele mesmo ano. Ela narrava a seca que assolava o Nordeste e que se arrastaria para os anos vindouros de 1997, 1998 e 1999. Ainda procurei a reportagem para anexar a esta coluna, porém não encontrei. Nela, o repórter narrava o sofrimento de crianças, desnutridas, do Sertão pernambucano que tinham somente a Palma para comer, e comiam. Me recordo do choque que tomei ao ver crianças sendo obrigadas a comer a mesma comida que meus primos do Casserengue ofereciam aos rezes.

Tristemente, Asa Branca, foi reproduzida na reportagem como uma trilha sonora do sofrimento dos meus irmãos nordestinos. Ainda hoje me emociono ao lembrar daquelas cenas, ainda mais sendo hoje um pai, e sempre que escuto esta música em qualquer ambiente ou contexto uma melancolia toma conta do meu peito:

“Quando olhei a terra ardendo

Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, aí

Por que tamanha judiação

Eu perguntei a Deus do céu, aí

Por que tamanha judiação”!


Seu Luiz Gonzaga, O Rei do Baião, foi e é o maior representante artístico do Brasil Real que nossa cultura produziu. Um verdadeiro monarca que, com as bênçãos de Santa Luzia, fez ecoar com sua voz todas as agruras e alegrias do seu povo. Uma entidade que, com uma coroa de flores de Jitirana, cantou os pássaros, as árvores e todas as belezas naturais do seu lugar. Um espelho de beleza, onde cada nordestino se enxergava vibrante, feliz e potente. O Nordeste, com todos os seus defeitos, ainda ama e idolatra o seu maior ídolo. Todo nordestino tem uma história para contar envolvendo e Velho-Lua. A prova disto é que, eu que não acompanhei sua atuação em vida, nas festas entre amigos e familiares, ainda pego meu triângulo e canto junto aos meus de peito aberto e desafinado:

"O meu cabelo já começa prateando

Mas a sanfona ainda não desafinou

A minha voz vocês reparem eu cantando

Que é a mesma voz de quando meu reinado começou"

Sobre o Retalho de hoje? É uma bela exaltação ao homem que conquistou o país com sua sanfona e que faria uma passagem pela capital do nosso estado, a Paraíba!