O Futuro Pelas Almas Atuais |
Em uma dissertação de mestrado da universidade de Cambridge, elaborado pelo estudante Kenneth John Freeman no ano de 1907, é narrado o trecho que, em livre tradução, aparentemente, argumentava contra o “afrouxamento” na educação dos jovens:
“A nossa juventude adora o luxo, desprezo pela autoridade, desrespeito aos mais velhos e amor pela conversa em vez do exercício. As crianças começaram a ser os tiranos, e não os escravos, das suas famílias. Eles não se levantavam mais quando um ancião entrava na sala; contradiziam os pais, conversavam diante de convidados, devoravam as guloseimas da mesa e cometiam diversas ofensas aos gostos helênicos, como cruzar as pernas”.
Posteriormente, por motivos que desconheço, estas palavras foram sendo publicadas e atribuídas nos jornais americanos no decorrer do século XXI, e mais recentemente a internet, aos filósofos gregos Sócrates e Platão.
Pois bem, além das origens, é fato que elas revelam um sintoma: O conflito de gerações! Desde sempre, principalmente aqui no Nordeste onde a Tradição (e isso envolve muitos aspectos culturais) é fortíssima, e a gente escuta os mais velhos, desde sempre, criticando a juventude e falando a célebre e reacionária frase “no meu tempo era melhor”! Em termos sociais, mente todo aquele que faz uso dessa afirmação abraçando a sua individualidade e esquecendo do coletivo. Em termos de cultura, mente quem diz que nossa cultura está se esvaindo, se perdendo!
Essa afirmação se torna pior quando esta percepção é propagada por aqueles que dizem ter um “bom gosto cultural”, mas que muitas vezes possuem uma opinião formada a partir da mistura do congelamento mental com o ressentimento, pois muitas vezes estes críticos são totalmente ignorados em seus cenários de atuação. Botar o pé na rua, procurar, pesquisar e conhecer dá trabalho e esse povo reclamão, constantemente, é mais preguiçoso do que defensor da cultura de seu povo. Vive enclausurado, relembrando as experiências individuais que viveu no passado e pouco se procura em conhecer o que está sendo produzido além do que lhe é entregue pelos meios de comunicação de massa!
Há sempre cultura de qualidade sendo produzida no mundo, sempre houve e sempre haverá enquanto existirmos neste planeta, assim como haverá sempre a de baixa qualidade. Mas voltando ao passado e focalizando no Nordeste brasileiro, onde inúmeros conterrâneos nossos vivem com suas mentes, eu aponto o óbvio: o nosso gênio maior, Luiz Gonzaga, não existia antes da década de 40 no cenário cultural nordestino, ou seja, esta tão celebrada Tradição possui 80 anos, bem dizer duas gerações! Lembro também que quando Luiz apareceu com a novidade do Baião, e com a criação do trio pé-de-serra, foi execrado de tudo que é adjetivo que não presta, por muitos "entendidos" que não aceitavam aquela novidade, tanto entre o povo nordestino como nacionalmente. Mas ele sobreviveu, pois como dizia por aí o inglês Thomas Morus, autor do clássico do medievo europeu “Utopia”: “A tradição não é reter as cinzas, mas sim transmitir a chama adiante”. Luiz não se reteve, se adaptou e levou a chama das suas tradições, tudo que caracteriza o seu povo, adiante. Todavia levou com uma nova roupagem e com novas ferramentas e eu provo isso:
Talvez nem todos atentem para isso, mas a sanfona não é um instrumento, diferente de violas, rabecas, flautas e tambores, que estão no Brasil desde o início de sua formação e, consequentemente, na formação do Nordeste. Pelo contrário, a sanfona adentrou em nosso país pelo Rio Grande do Sul, conforme afirma Renato Almeida no livro História da Música Brasileira, com os colonos italianos e alemães na segunda metade do século XIX. Sendo levada, posteriormente, ao Norte por soldados nordestinos que lutaram na guerra do Paraguai, em 1864-70, possivelmente, a sanfona de oito baixos por ser mais simples e barata. Aqui a Sanfona não ganhou os grandes salões e sim as pobres choupanas sertanejas, fato esse que nos leva a crer que o afamado Januário, pai de Luiz Gonzaga, seja talvez da segunda geração de sanfoneiros do Nordeste. Bom, mas o que quero dizer com isso? Quero mostrar quando Luiz começou a tocar “as coisinhas do Norte” lá pelo Sul, com sua sanfona de 120 baixos, que até então só tocava valsas e polcas, foi um assombro! A Sanfona de 120, ou mais, baixos, foi adaptada, em conjunto com o triangulo e a zabumba, para o que Luiz queria tocar!
Luiz Gonzaga na década de 40 |
Então, meu elevadíssimo Leitor, esse papo de que o passado está associado a qualidade e o novo ou presente está associado ao que não presta é uma visão ruim, rasa, idiota e preguiçosa. Há lixo cultural hoje tão ruins quanto os da década de 40 e há riquezas culturais hoje tão boas quanto na década de 40. Quem ditará a qualidade de qualquer coisa que se produza é o senhor do infinito, o Tempo! Hoje, eu sou da opinião que precisamos sempre exercitar o conhecimento e lutar constantemente com o preconceito das nossas vistas e mentes. Pois, se algum Luiz Gonzaga aparecer por aí, eu quero estar atento!
E foi assim, com os olhos sempre atentos, que, na plataforma do Instagram, conheci Carlos Filho. Era fevereiro e ele estava tocando, em um de seus tantos vídeos postados, um Frevo de Capiba. Eu sou um homem de paixões, não nego isso e nem muito menos a minha intensidade, sendo assim, confesso também que me apaixonei por aquele cabeludo que tão magnificamente tocava em seu violão composições do mestre de Surubim.
Carlos Filho |
Carlos executava, com uma delicadeza incrivelmente única, aquelas músicas que muitas vezes passam despercebidas entre as algazarras das fanfarras e dos blocos. Ele me apresentou ali, com seu violão e sua tenra voz, por mais que eu já conhecesse algo, o Frevo-Canção e me revelou como a nossa cultura brasileira é repleta de facetas desconhecidas. Minha mãe me disse certa vez: “Meu filho, vai chegar um tempo em sua vida que você verá coisas que outras pessoas não enxergam”. Bom, a primeira vez que bati o olho em Carlos eu vi que não estava diante de mais um dos tantos vídeos artísticos que passam diante da “timeline” dos nossos “smartphones”. Fuçando e olhando outros vídeos dele, eu tive a certeza de que estava diante de um novo Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Ednardo etc.
Carlos e seu Violão em um dos seus vídeos no Instagram |
Cito estes artistas para que o elevadíssimo Leitor possa ter a exata noção do impacto que a visão de Carlos me causou. Pois, assim como estes grandes vultos nordestinos, vejo que Carlos carrega a chama que eles carregaram e carregam. E foi diante desta percepção que, não constando história, o convidei para uma live que conduzo no meu perfil do Instagram: o Café com Live. Para minha sorte ele aceitou e assim, como desconhecidos, mas unidos pela gana de falar, fazer e de conversar sobre cultura, nós fizemos a live. Clique no link abaixo para assistir:
Por pouco mais de duas horas conversamos sobre diversos temas e pude conhecer bem mais aquele “cabra-bom” que eu já admirava. Carlos é natural da cidade de Serra Talhada. Autodidata, o nosso cantor começou muito cedo a demonstrar seu interesse e sua aptidão pela música. Dono de um timbre de voz inconfundível, e de um bom gosto musical excepcional, desde o primeiro momento ele me pareceu mais um fruto, raro e precioso, desta frondosa árvore chamada Pernambuco. E como se não bastasse a belíssima voz, o danado ainda toca o violão, o piano e é compositor!
No entanto, foi a sua voz que o levou para o programa The Voice, da Rede Globo! Carlos já se apresentava em várias casas do Recife, onde mora há quase 20 anos, com grupos como Bandavoou, Estesia e Orquestra Malassombro. Também já se apresentava no Marco Zero, para uma multidão de espectadores, anualmente, no tradicional espetáculo natalino Baile do Menino Deus. Dessa forma, ele já era conhecido na cena recifense, mas ao participar de um programa de vulto nacional, ele desponta. No The Voice encanta a todos em sua “audição as cegas” cantado magistralmente Enquanto Engomo a Calça, do cearense Ednardo, e tem várias “cadeiras viradas” escolhendo por fim o time do cantor Lulu Santos.
Carlos Filho no Programa The Voice, da Rede Globo |
Para tristeza da imensa torcida, após várias etapas, o “cabra-de-serra-talhada” é eliminado, não por outros oponentes, mas pela gripe. Carlos deixa o programa e deixa em todos nós um gostinho de “quero mais”. Passado todo fuzuê do programa e hoje ciente de suas grandes e únicas qualidades, Carlos me confessou, provocado por mim, na Festa de Louro de 2023 onde nos encontramos: “Eu ia ganhar o programa”! Estou narrando isso aqui, primeiro porque tenho o “bucho furado” (riso) e em segundo lugar para mostrar que quando estamos cientes do que somos e do representamos essa coisa de modéstia é relativa demais!
E foi justamente nesta festa poética e pajeuzeira, a Festa de Louro, que eu e Carlos nos aproximamos e nos conhecemos melhor. Pude ver um cabra pôr vezes inocente e gentil, pôr vezes brincalhão e maldoso, e pôr muitas vezes generoso. Os meses passam e, após este encontro, conversamos mais algumas vezes pelo whatsapp, até que numa destas conversas Carlos comunica que vem à capital da Paraíba a passeio. O recebo na minha casa e, para minha surpresa, ele vem acompanhado de toda sua família. Conversamos um bocado, brincamos outro tanto e por fim lhe entreguei o meu livro. No dia seguinte recebo uma mensagem dele: “Acabei de ler teu livro”. O que ele não sabe é do bem que me fez quando me mandou essa mensagem. Independente se gostou ou não do livro, ele teve a consideração de ler e isso é o que importa. Pois, me informando isso Carlos revelou que havia se concluído mais um elo entre a mente criadora e a mente receptora e é justamente sobre isso que vim escrever aqui!
Carlos Filho e Igor Gregório |
Há algumas semanas soube, pelas plataformas digitais, que Carlos havia lançado seu primeiro álbum solo: o Baile Brasileiro! Antes de adentrar neste universo particular, gostaria de observar que pouco tempo antes do álbum Carlos realizou, com Giuliano Eriston, um concerto no Cinetreatro São Luiz (link abaixo), no Ceará, que, buscando uma referência, a meu ver, pode ser comparado facilmente ao encontro de Alceu Valença e Geraldo Azevedo no disco Quadrafônico!
Carlos nunca negou a influência pesada do Forró sobre sua personalidade artística, mas pelo que ouvi dele, houve, por um tempo, certa relutância em assumi-la. Ao lançar este álbum, primeiro ele expõe a coragem em botar no mundo um produto completo ao invés desse negócio minguado e pouco criativo chamado EP que os artistas musicais abraçaram hoje em dia. Em segundo lugar expõe a coragem de assumir seu lado “gonzagueano” ao trazer o forró tradicional repleto de referências que, mescladas, o tornam original.
Link para o álbum Baile Brasileiro, Carlos Filho (2024) |
A primeira faixa do álbum é Aboio, Afeto y Recanto, que me encanta e me apresenta o que vem pela frente. O que observei a princípio foi a letra “y” sendo utilizada como vogal. O que pode parecer um traço estético moderno, na verdade se trata, pelo que pude deduzir, de uma referência aos textos antigos, textos que remetem a nossa colonização, onde a língua espanhola exercia ainda uma grande influência na portuguesa. Dessa forma, esta pequena referência me remete logo à Tradição, me dando um "spoiler" o que vem pela frente. E confirmando esse achismo, ao dar o play, sou levado pela bela voz de Carlos a um “aboio de apresentação”, a uma “loa de chegança”, a uma “uma estrofe de anunciação de um Maracatu”, que irá servir de abre-alas para todo sentimento proposto no projeto! Nesta faixa, e nas demais, a voz inconfundível do nosso serratalhadense é acompanhada pela sanfona do também jovem, talentoso e paraibano de Umbuzeiro, Felipe Costta.
Carlos Filho e Felipe Costta |
Logo após vem a faixa Barraco na Ribeira. Escrita por Giuliano Eriston, vencedor da edição do The Voice em que Carlos foi eliminado, a música coloca todo mundo para dançar com um pé-de-serra bem sanfonado e ritmado. Sendo sincero e fiel as minhas preferências, confesso que não curto muito quando a poesia e o texto da música tentam emular o linguajar do povo. O povo não erra o português porque lhe é natural ou intrínseco, mas por uma falta de estrutura da sociedade que faz com que ele não tenha acesso devido à educação. Então quando pessoas, que possuem tal acesso, simulam o linguajar do povo, ao meu julgamento, fazem uma espécie de caricatura. Mas como disse, essa é uma opinião geral minha e de forma alguma prejudica a experiência musical da faixa em questão.
Depois de colocar o povo para dançar, vem a canção Cuidar de Mim. Composta por Ítallo Costa, também ele cantor e compositor da nova geração nordestina, a música nos traz um daqueles xotes que colocam a gente pra dançar, mas dessa vez agarradinho, devagar e ainda pensando, entre os arrastados da chinela, nos amores e desamores que a gente viveu. Bom demais!
É aí que nos retorna Giuliano Eriston com outra composição: Devagar, Meu Bem. Com uma poesia delicada e com o português correto, mas sem com isso se distanciar dos maneirismos que caracterizam os nordestinos, como no verso que diz “vida é rede de balançar” e como no sotaque acentuado de Carlos que já embeleza tudo de nordestinidade, a música brilha. A poesia ainda está envolta duma melodia gostosíssima, pontuada pelos excelentes solos de sanfona de Felipe Costta.
Na quinta faixa do álbum, Maçã do Rosto, Carlos me reapresenta uma canção que havia passado despercebida por mim ao ouvir o disco A Voz, o Violão, a Música de Djavan, confesso. “O Deus das Alagoas”, como disse Mano Brown em seu podcast, é um mestre da palavra e mais ainda da interpretação destas palavras. Sendo assim, é sempre perigoso quando nos colocamos ao lado destas entidades. No entanto, a interpretação de Carlos, além de dar luz a esta canção, me trouxe uma nordestinidade e uma qualidade vocal bem mais elaborada do que na primeira versão. A comparação é inevitável, mas não é maléfica. Acho que ela, neste caso, mais une do que separa. E eu já aguardo ansiosamente a versão ao vivo da canção com a participação de Djavan!
A Voz, o Violão, a Música de Djavan |
Na penúltima faixa do álbum, sentindo já um gostinho de saudade, se apresenta a canção Tu Vai Ver. Composta em parceria com Giuliano, Carlos divide o vocal da canção com Sarah Leandro, filha do valiosíssimo Flavio Leandro, oriunda do município de Bodocó. Não sei por que, mas essa canção me lembrou um bocado as canções do mestre Petrúcio Amorim. Ela é uma daquelas músicas que a gente aumenta o volume do rádio e canta junto, como Meu Cenário, Anjo Querubim, Filho do Dono, Tareco e Mariola e tantas outras canções fortes e marcantes!
Chegando à última faixa, Forró pra Tia Lila, e ao final deste lindo passeio forrozeiro, temos uma canção instrumental que se despede do ouvinte fazendo um carinho em sua alma. Deixando na gente aquele choramingado feliz de saudade que todos nós sentimos ao nos despedimos dos nossos queridos, geralmente na cozinha de casa, que nos visitam para um café regado à boas histórias e muitas risadas.
Agora, neste ponto, me vejo no final desta longa coluna em homenagem ao meu querido Carlos Filho reafirmando, e ressentindo, o que já disse em seu começo: A nossa cultura não está se perdendo ou acabando. Ela está se renovando nas mentes de Carlos, Giuliano, Felipe, Ítallo, Sarah e tantos outros que amam esse nordeste do mesmo tanto que eu amo.
Quem mantém a cultura viva é o povo. Ele faz e consome a própria cultura. A cultura do povo não está nos grandes festivais de música porque o povo de verdade não está lá, onde a maioria destes saudosistas que citei vivem, o povo está produzindo sua cultura onde sempre produziu, nas suas localidades, rurais ou urbanas. Pois me diga quem faz todos os anos o festival de Quadrilhas Juninas brilhar? Quem faz todos os anos o desfile de Ala-Ursas alegrar tantas crianças paraibanas? Quem faz todos os anos os desfiles de Maracatu mostrarem sua realeza pelas ruas do Recife? Eu respondo: O povo!
A juventude no desfile do Maracatu |
Semana passada fui à uma cantoria, legítima, de pé-de-parede, num bairro periférico aqui da capital da Paraíba, e não vi nenhum destes defensores da tradição e da cultura lá. Pelo contrário, vi o povo! Sendo assim, meu elevadíssimo Leitor, eu estou tranquilo por observar que a chama da nossa cultura está viva e sendo levada à frente por Carlos Filho e inúmeros jovens que eu poderia passar o dia aqui citando. Estou tranquilo ao observar a vontade dele de produzir sem perder o que lhe faz único: As referências de sua Tradição! Estou tranquilo em saber que no futuro meu filho terá música de qualidade para escutar. Só não estou mais tranquilo porque, eu, como um legítimo e orgulhoso paraibano, tive que passar todo esse texto elogiando um pernambucano (risos)!