sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Retalhos do Jornal - Quatro Viúvas de Cantadores

Os registros no campo da Cultura Popular Brasileira ainda são bastante incipientes diante dos outros escopos de estudo, e se não fosse pela iniciativa de alguns indivíduos eles estariam totalmente perdidos. Várias pessoas singulares desapareceriam nas linhas da história. Versos, loas e danças seriam somente uma lembrança remota e perdida na mente das proles que já vivem em outro tempo, numa outra realidade.

Resguardar este tipo de conhecimento não é uma obrigação e sim um prazer. Percebo isso quando leio pesquisadores como Silvio Romero, Lourdes Ramalho, Câmara Cascudo, Oswaldo Lamartine, Altimar Pimentel, Ariano Suassuna, Mário de Andrade, Gustavo Barroso, Rodrigues de Carvalho e o pesquisador que, sem intenção, acabou nos gerando o Retalho de hoje: Leonardo Mota!

Data do Retalho: Quarta-feira, 4 de abril de 1956

Jornal: O Norte

Título do Retalho: Quatro Viúvas de Cantadores

Autor: Juarez Furtado Timóteo

Antes de apresentar o Retalho “principal”, gostaria apresentar a figura singularíssima do escritor e folclorista Leonardo Mota, assim como alguns Retalhos encontrados a seu respeito:

Câmara Cascudo descreve assim Leonardo Mota: “Era ele mesmo o sertão. Um toro de aroeira, ardendo ao sol do Ceará, povoado de violeiros e sonoro da estridência desafiante das pelejas cantadeiras. Baixo, grosso, impetuoso, a máscara risonha, irradiante de simpatia, irresistível de comunicabilidade". Leonardo Ferreira da Mota Filho veio ao mundo no dia 10 de maio de 1891, na cidade de Pedra Branca no Ceará. Ainda na primeira infância mudou-se com sua família para Quixadá, também no Ceará, onde estudou e passou meninice. No Ginásio, no Mosteiro de São Bento na Serra do Estevão, começou logo cedo a praticar sua afamada oratória. Em 1909 forma-se em Ciências e Letras pelo Lyceu do Ceará. Em 1916, forma-se em Direito na Faculdade do mesmo estado.

Seu primeiro trabalho editorial foi na revista A Jangada. Nesse meio tempo, em 1912, Leonardo vai para cidade de Ipu e ali assume a direção do Instituto José de Alencar, sendo neste período em que o Leota, cognome do nosso folclorista, se apaixona por toda poesia dos Vates Sertanejos: Cantadores, cordelistas e poetas populares! Ainda no Ipu, em 1912, Leonardo casa-se com Luiza Laura de Araújo, com quem vem, posteriormente, ter seis filhos. Em 1913, funda no Ipu a Gazeta do Sertão, e a partir daí tem início a sua carreira de profissional de imprensa, escrevendo para vários órgãos noticiosos do Ceará e do Brasil. Após sua formação em Direito, em 1916, vira oficial de gabinete do então Governador do Estado, na mesma época foi nomeado diretor da Gazeta Oficial.

Leota na primeira edição do livro Cantadores

Publica, em 1921, o livro Cantadores pela Livraria Castilho do Rio de Janeiro. O livro é um estrondoso sucesso em todo o país, tento a tiragem de sua primeira edição aumentada pelo editor A.J. de Castilho devido a quantidade de cartas que solicitavam o singular registro.

No livro, o Leota, relaciona cinco cantadores: O Cego Symphronio, Jacob Passarinho, Sebastião Candido dos Santos (Azulão), o Cego Aderaldo, Luiz Dantas Quesado e João Faustino (Serrador). Vários são os versos (de memória e improviso) recolhidos por Leonardo com os próprios cantadores. De leitura leve e divertida o livro ainda hoje é de fácil acesso para aqueles que o buscam, pois obteve várias edições. Vale também salientar que o livro foi o primeiro do seu gênero a revelar ao leitor a face dos poetas populares, tanto em sua capa quando no seu corpo:

Capa da primeira edição do livro Cantadores, 1921

Além da descrição acima, vale ressaltar uma coisa que não se vê no meio dos improvisos e desafios de cantadores nos dias atuais, ou que pelo menos é muito raro, a peleja entre viola e rabeca.

Leonardo Mota na Paraíba divulgando o livro Cantandores
Jornal O Norte, quinta-feira 2 de julho de 1921

José Américo de Almeida sobre a Conferência de Leonardo Mota na Capital Paraibana
Jornal O Norte, quarta-feira, 1 de Junho de 1921 

Após o sucesso de Cantadores (1921) Leonardo publica na sequência: Violeiros do Norte (1925); Sertão Alegre (1928); No Tempo de Lampião (1930); Prosa Vadia (1932); Padaria Espiritual (1938) e Adagiário Brasileiro, uma obra póstuma lançada em 1982 por seus filhos Orlando Mota e Moacir Mota.

Destes, li Violeiros do Norte, logo após a leitura de Cantadores, e percebi algumas diferenças: O primeiro foca em cinco cantadores, conforme relatado acima, o segundo é narrado como uma palestra, como uma transcrição do que Leonardo levava ao público em suas andanças pelos teatros e salões do Brasil. Em Violeiros do Norte, Leota nos apresenta versos de vários cantadores do Nordeste, dos mais afamados aos mais incógnitos. Transcreve pelejas, folhetos e histórias. Compara versões, contrapondo os seus registros com os de Gustavo Barroso e Rodrigues Carvalho. Também de fácil leitura e fácil acesso Violeiros do Norte foi um sucesso, a prova no Retalho abaixo:

Capa da primeira edição de Violeiros do Norte (1925)
pela Editora Monteiro Lobato


José Lins do Rêgo sobre a reimpressão do livro Violeiros do Norte de Leonardo Mota
Jornal O Norte, segunda-feira, 28 de Março de 1956


Quando bati os olhos no Retalho que hoje trago à luz, senti uma daquelas alegrias reveladoras que somente os historiadores e arqueólogos devem sentir. Era como se, além da descoberta do preciosíssimo livro Cantadores de Leonardo Mota, eu conseguisse ir além, e cavando mais um pouco encontrasse mais outra pepita da Cultura Popular.

Apesar da alegria inicial, ao ler o registro de Juarez, foi adentrando no meu ser uma melancolia ao perceber que as linhas deste Retalho eram repletas de injustiças e abandono. Meu elevadíssimo Leitor, o inigualável Machado de Assis disse certa vez, enfatizando a importância do jornal impresso: "Hóstia social da comunhão pública", dessa forma, eu busquei toda empatia de minha alma e os olhos do Cristo para traduzir que eu lia neste triste Retalho.

Vi, mais uma vez, o quanto é injusta a vida dos Mestres Populares, que tanto doam ao Brasil, e como é também injusto o abraço dos pesquisadores que se debruçam sobre a Cultura Popular. Estes pesquisadores que oferecem as maiores atenções aos Mestres Populares, capturando tudo que há de mais precioso em suas vidas, para em seguida espalharem em suas obras pelo mundo. Mas, após este abraço tão apertado, vão embora e nunca mais se fazem presentes. Sem se preocupar com o retorno, sem praticar a gratidão e sem dividir o pão!

No Retalho podemos ver o estado de penúria de quatro viúvas. Esposas de quatro dos cinco Poetas listados e debulhados por Leonardo Mota em seu livro Cantadores. Quem faz o alerta para a mazela em que vivem estas viúvas é o também cantador Siqueira Amorim, representando a Associação dos Cantadores do Ceará. Gostaria também de ressaltar as figuras do jornalista cearense Juarez Furtado Timóteo e do Jornal O Norte aqui da Paraíba, que, tão distante do lugar de origem do relato, fez com que olhos mais caridosos pudessem enxergar daqui, do solo paraibano, todo este abandono.

Como provocado acima, este Retalho nos expõe esta contradição: Ao mesmo tempo que estes pesquisadores propagam, e muitas vezes eternizam nas páginas do Tempo, estes Mestres da Cultura Popular com suas obras, também, após realizarem seus trabalhos, estes pesquisadores abandonam e não dão nenhuma espécie de apoio aos referidos Mestres. Raros são os casos dos pesquisadores que retornam. Raros são os casos dos que tentam amenizar a situação de penúria que muitas vezes estes Mestres vivem.

Curiosamente, com muito esforço, há casos de Mestres que escrevem suas próprias histórias, e de seus companheiros de arte, sem precisar dos “holofotes” destes pesquisadores. Trago aqui três exemplos paraibanos: O primeiro é José Alves Sobrinho, cantador e autor de vários livros, entre eles preciosíssimo o Cantadores, Repentistas e Poetas Populares. O Segundo é Francisco das Chagas Batista, poeta e editor, que escreveu o histórico livro Cantadores e Poetas Populares. O terceiro e valioso exemplo é José Costa Leite, poeta e xilogravador, que escreveu em verso sua própria biografia, descrevendo, além de sua vida, sua arte. Abaixo os livros apontados:



O elevadíssimo Leitor pode me perguntar: “Mas Igor o que podem fazer estes pesquisadores, além de revelar para o mundo estes Mestres? Que tipo de auxílio podem eles oferecer”? E eu respondo: Podem fazer o que Leonardo aparentemente não fez! Levá-los, no caso do livro Cantadores, se não todos pelo menos algum Cantador, em suas andanças pelo Brasil na propagação de seu livro, e pagá-lo de forma justa. E se não pode levá-lo, pague-o! Divida seu lucro em cima da obra do outro!

Leonardo fez palestras em vários estados da nação. Teve seu livro Cantadores premiado na categoria Folclore pela Academia Brasileira de Letras. Foi um intelectual de certa forma bem sucedido. Tinha acesso livre a governadores e outras autoridades. Gozou de todos os benefícios do “Brasil Oficial” (buscando mais uma vez Machado) chegando até a ser presenteado com um cartório (o que era, e é até hoje em dia, uma mina de ouro) pelo governador do estado, sendo assim, a meu ver, poderia auxiliar de forma mais efetiva os vates populares que tanto elevaram indiretamente o seu nome.

Bom, nos dias hoje temos leis de incentivo a cultura que podem ser utilizadas para este "retorno". Mas quantos destes pesquisadores/fomentadores culturais incluem os Mestres em suas propostas? Estas leis de incentivo, que de certa forma fornecem dinheiro aos artistas, estão mirando em quem? Nos produtores culturais que possuem preparo e expertise para preencher os complexos requisitos dos editais ou nos Mestres que muitas vezes não possuem este preparo e nem amparo para participar de tais leis?

Não estou aqui apontando dedos. Não quero crucificar ninguém, muito menos Leonardo Mota. Longe de mim! Não estou dizendo aqui que os pesquisadores listados no início desta coluna fizeram isso, mas estou afirmando que esta prática, por vezes maléfica, de “garimpo cultural” é bastante comum no meio da Cultura Popular.

Vários são os casos em que Mestres têm suas obras exploradas por pesquisadores e que posteriormente são esquecidos! Ninguém é obrigado a ajudar ninguém, mas também ninguém é obrigado a sair de casa e explorar os dons de ninguém! Talvez isso tudo passe até pela forma escravista na qual foi criado nosso país, onde o individuo escravizado não era considerado uma pessoa e sim um produto a ser explorado. Eu me julgo, e isso é o que realmente importa, pois meu papel aqui é aprender: Será que não ajo assim? Será que estou caminhando por estas veredas? Quem ganha com ações desse tipo? O simples fato de expor estas obras para o mundo é retribuição suficiente? Pelo Retalho abaixo a resposta é não:

Jornal O Norte, quarta-feira, 4 de abril de 1956










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