quarta-feira, 10 de abril de 2024

Retalhos do Jornal - Taquigrafando Cantadores

O Passado nas Páginas dos Jornais

Umas das coisas que me encantam nos verdadeiros e bons apologistas da Cantoria de Viola Nordestina, aqueles que não somente conhecem, mas que também estudam o tema, é sempre descobrir um modo de aquele verso incrível, feito de improviso da cantoria, permanecer pulsando nas veias do tempo.

Data do Retalho: Terça-feira, 8 de abril de 1952

Jornal: O Norte

Título do Retalho: Taquigrafando Cantadores

Autor: Hélio Zenaide

Buscando essa imortalização poética, muitas cantorias viraram Folhetos de Cordel para correrem o mundo-sertão em um tempo em que não se tinha gravadores. Há famosas batalhas contadas e recontadas nas páginas folhetescas como a disputa de Inácio da Catingueira e Romano do Teixeira, a do Cego Aderaldo e Zé Pretinho, a de Antônio Marinho e Pinto do Monteiro etc.


Já outras pelejas foram memorizadas, muitas vezes por completo, por mentes prodigiosas! A mais famosa de todas estas mentes é a de Zé de Cazuza. Como disse uma neta dele em entrevista: “Parece que Vovô tem um juízo sobrando, pois decora os versos dele e dos cantadores”. Zé de Cazuza, O Gravador Humano, que, além de gravador, é poeta-repentista, afirmou certa vez: “Parei de gravar versos quando o gravador elétrico chegou”.

Zé de Cazuza, O Gravador Humano

E quando os gravadores elétricos chegaram, incontáveis cantorias foram registradas. No começo, por quem podia arcar com o preço dos equipamentos, mas com a popularização da tecnologia vários entusiastas da Arte do Improviso puderam registrar as memoráveis cantorias com os gravadores portáteis.

Hoje, a gente não precisa nem ir até a cantoria! Elas estão sendo transmitidas na internet, em tempo real. E ficam gravadas automaticamente nas plataformas de vídeo. Podem ser assistidas e reassistidas quando o ouvinte desejar e onde desejar. Um exemplo maravilhoso é o canal do Clube do Repente que transmite cantorias de primeira qualidade já há muitos anos. Link para o canal: Clube do Repente

Dando um passo atrás no tempo, outra forma peculiar de gravação de momentos humanos, que descobri em minhas pesquisas, foi a Taquigrafia. O conceito? Taquigrafia é o método abreviado ou simbólico de escrita, com o objetivo de melhorar a velocidade do registro em comparação com um método padrão de escrita.

Exemplo de Taquigrafia

Este método, altamente sofisticado, foi utilizado por alguns para registrar discursos, passagem históricas, apresentações, entrevistas e julgamentos ao longo de toda história humana. Mas também foi utilizado por outros para fazer coisa muito melhor do que registrar o falatório monótono e caricato de juízes e políticos: Registrar versos em cantorias! Um Taquígrafo iluminado foi o jornalista, meu conterrâneo, Hélio Zenaide.

Hélio Zenaide

Hélio Nóbrega Zenaide nasceu no dia 26 de outubro de 1926, no Engenho Barra Nova, na cidade de Alagoa Grande, filho de Herectiano Zenaide Nóbrega de Albuquerque e Maria Elvídia Nóbrega Zenaide. Foi casado com D. Ada Tavares Zenaide com quem teve quatro filhos: Maria Valéria, Maria de Nazaré, Eugênio Pacelli e Marina.

Formou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela tradicional Faculdade de Direito, em 1954. Iniciou sua carreira como servidor público em 29 de julho de 1949, quando foi nomeado Taquígrafo da Assembleia Legislativa do Estado, fato esse de suma importância para o que vamos revelar no Retalho de hoje. A partir daí exerceu vários cargos públicos no Estado, todos eles de grande relevância: Colunista e diretor de Jornais Impressos, respectivamente O Norte e a União.

Voltando nossa atenção para o Colunista Hélio Zenaide, buscando o acervo do Jornal O Norte, encontrei várias colunas do nobre jornalista intituladas Taquigrafando Cantadores. Qual foi o meu espanto, envolto a outras pesquisas, encontrar, nos arquivos do Jornal O Norte na Hemeroteca Digital, uma coluna sobre um tema que me é tão caro. Confesso que me senti um verdadeiro arqueólogo retirando a poeira do tempo de versos que estavam ali enterrados nos acervos do Jornal. Soterrados por camadas e mais camadas de notícias rotineiras e burocráticas.

A coluna não era rotineira, pelo que percebi, não seguia um dia predeterminado nas folhas do jornal. Ela acontecia quando Hélio ia simplesmente contemplar uma boa cantoria. Ou quando um célebre cantador ou poeta riscava pela capital da Paraíba. Ou quando numa viagem a trabalho Hélio esbarrava com cantadores pelas estradas e bares do estado. Ou ainda quando seu amigo, o grande José Alves Sobrinho, O Cantador Que Perdeu a Voz, o convidava para uma conversa e lhe relatava as peripécias versificadas dos vates sertanejos. Em resumo, a coluna era feita ao acaso dos encontros e talvez essa seja sua verdadeira preciosidade: Ela era feita de repente!

Mas talvez por isso, ou por uma simples questão editorial, pois até o hoje o tema é escanteado, a coluna durou poucos meses. No acervo que consegui encontrar oito registros. E este é o primeiro que vou compartilhar o elevadíssimo leitor:

Jornal O Norte (08.04.1952)

O Retalho acima data de 08 de abril de 1952. Nele, Zenaide relata seu encontro, à beira mar da Praia de Tambaú, com dois cantadores: José Alves Sobrinho e Estrelinha. Interessante observar, e revelo que este será um tema de futuras colunas neste blog, é a participação dos poetas em programas da Rádio Tabajara. No Retalho o jornalista também deixa claro que possui um bom acervo recolhido, deste e de outros encontros, acerca dos “vates populares” e que pretende brindar o leitor com tais registros.

José Alves Sobrinho


Estrelinha é o primeiro cantador em pé da direita para a esquerda

Quando bati os olhos neste registro anotado por Hélio, logo me lembrei do livro Cantadores Com Quem Cantei, de José Alves Sobrinho e fui buscar alguma informação sobre os encontros entre o poeta e o jornalista. Encontrei! Na verdade, o registro data de um período posterior à 1952 onde os cantadores vão à fazenda Bastiões, em Alagoa Grande, do pai de Hélio, o Senhor Herectiano Zenaide. Abaixo o curiosíssimo relato datado de 1953 descrito pelo cantador: 

Logo que cheguei em Campina Grande, recebi o convite do engenheiro Herectiano Zenaide para fazer uma cantoria no dia do almoço que ele ia oferecer aos governadores que haviam tomado parte da mesa-redonda que o governador José Américo realizou em João Pessoa.

Eram oito deles: além do governador da Paraíba, José Américo de Almeida; Sílvio Pedrosa, do Rio Grande do Norte; Paulo Sarazate, do Ceará; Etelvino Lins, de Pernambuco; Silvestre de Góes Monteiro, de Alagoas; o governador da Bahia, que não me recordo o nome; Pedro Ludovico, governador de Goiás. Porém nesse almoço oferecido por Zenaide, na fazenda Bastiões, somente compareceram quatro governadores: o da Paraíba, o do Rio Grande do Norte, o do Ceará e o governador de Goiás. Nessa ilustre comitiva de governadores, vieram o jornalista Assis Chateaubriand e o escritor José Lins do Rego.

Cantamos meia hora, por ocasião do almoço, e ninguém nos deu a mínima atenção; cantamos péssimo. Porém, depois do almoço, viemos para o alpendre da casa da fazenda, onde José Lins do Rego pediu para nós cantarmos mais um pouco porque não nos ouvira na hora do almoço.

No alpendre da fazenda Bastiões, fomos bem escutados especialmente pelo escritor José Lins do Rego, que intimou Assis Chateaubriand a vir assistir a cantoria, dizendo: - Assis, vem cá! Você precisa ouvir isto aqui como nordestino! Com essa atenção, naturalmente cresceu nossa inspiração. Lembro-me bem de duas estrofes, a primeira de Estrelinha, dirigida ao jornalista Assis Chateaubriand, dessa maneira:

Seu Assis Chateaubriand
Tem artigos magistrais
Do Brasil ao estrangeiro
Como ele ninguém faz,
Eu quisera ver meu nome
Nas páginas de seus jornais.

Eu respondi:

Ele é um dos principais
Jornalistas renomados,
Em toda parte do mundo
Seus jornais são respeitados,
Pois é o dono dos Diários
E Rádios Associados.

Assis Chateaubriand depois veio nos cumprimentar eufórico, dizendo a Estrelinha: "Seu nome eu vou mandar para sair no amanhã no 'Diário de Pernambuco'". Em seguida, botou a mão no meu ombro e perguntou-me: - "Quer cantar em rádio?" Respondi que "sim". Ele então tirou um cartão do bolso, escreveu umas linhas e me entregou o dito cartão dizendo para eu mostrar ao diretor da Rádio Borborema de Campina Grande, o Sr. João Bastos. Eu naturalmente fiquei muito contente e até tentei ler o cartão, mas não consegui, tal era a garrancheira da caligrafia. Guardei-o com muito cuidado. O imortal escritor José Lins do Rego caçoou muito comigo, depois disse: "poeta, fale nos nomes dos governadores", que nessa ocasião estavam do lado de lá do alpendre, distante”.

Livro Cantadores Com Quem Cantei (2009), José Alves Sobrinho

Todo esse trecho confirma a ligação de José Alves Sobrinho com a família Zenaide e fortalece as informações descritas por Hélio na sua coluna. E nela também podemos constatar os desatualizados e esquecíveis versos de Luiz Dantas Quesado sobre o beijo forçado numa mulher. Versos esses que não sobreviveram ao tempo nas bocas e ouvidos dos amantes da poesia nordestina. Luiz Dantas Quesado conforme registrado por Leonardo Mota em seu livro Cantadores, 1921, foi um repentista nascido em 1850 em São João do Rio do Peixe (PB) e que viveu por toda sua vida no Ceará. Os versos registrados por Hélio na verdade não são uma décima (estrofe com dez versos de sete sílabas poéticas) e sim quadrinhas conforme nos comprova Leonardo Mota:

Livro Cantadores (1921), Leonardo Mota

Por outro lado, temos os lindos e eternizados versos de Antônio Pereira de Moraes sobre a Saudade. Como José Alves Sobrinho deixa uma lacuna sobre o autor, a autoria dos versos eu o trago aqui, pois como eu disse, estes versos se eternizaram e são declamados até hoje nas rodas poéticas de todo o Nordeste. Abaixo uma sucinta biografia que encontrei do poeta oculto:

Conhecido como o Poeta da Saudade, Antônio Pereira de Moraes nasceu a 13 de novembro de 1891 em Livramento (PB). Mudou-se logo cedo para o município de Itapetim (PE), onde viveu até a sua morte, a 07 de novembro de 1982. Antônio Pereira de Moraes participava de jornadas de improviso apenas com os amigos e os seus versos sobreviveram ao tempo porque eram repassados verbalmente pelos seus admiradores que os decoravam. Em 1980, com a ajuda de amigos, publicou seu único folheto, “Minhas Saudades”, uma coletânea de sua poesia. Em complemento, deixo o registro valiosíssimo sobre o poeta do Canal do Youtube Bisaco de Doido: Clique aqui!

Da esquerda para a direita os poetas: Zé Marcolino, Manoel Filó e Antônio Pereira

Em complemento aos versos do Retalho, seguem os demais versos do Poeta da Saudade, Antônio Pereira:

Na Roseira da Saudade
tem cinco rosas de cores:
Branco é nada, roxo é raiva,
preto é luta e luta é dores;
Amarelo é desespero
e verde é nossos amores!

Saudade é uma mulher
do cabelo de Retrós*,
parece que foi criada
no leite do Avelós.
Sua rama é muito pouca
e sua sombra cobre nós!

*Retrós é uma linha para costura

Saudade é nada e é tudo,
saudade é como um perfume.
Eu só comparo saudade
com o peso do ciúme
que a gente carrega ele
mas não sabe o volume.

Saudade é a borboleta,
que não conhece a idade.
Se encanta e se desencanta
pra renovar a saudade,
soltando o pelo das asas
cegando a humanidade.

Eu só comparo saudade
com enxerto de Aroeira
que ele nasce e se cria
enrolado na madeira,
de forma que ninguém sabe
quem é a mãe da roseira.

Até mesmo um bicho bruto
sente saudade também,
morre o bezerro e vaca
pelo desgosto que tem.
Se zanga até com o dono
e não dá leite a ninguém.

Quem quiser plantar saudade
primeiro escalde a semente.
Depois plante em lugar seco,
onde bata o sol mais quente.
Pois, se plantar no molhado,
quando nascer mata gente.

Saudade é uma semente
nascida do satisfaz,
depois de estar nascida
se aguar cresce demais
e morrendo depois de velha
o que é que o dono faz?

Saudade é um parafuso
que na rosca quando cai,
Só entra se for torcendo,
porque batendo num vai
e enferrujando dentro
nem distorcendo num sai.

As seis horas a saudade aumenta mais
vagalume já vem de luz acesa,
nesta hora até mesmo a natureza
se condói com as coisas que ela faz!
Um carretel de tristeza ainda mais,
a saudade é quem vem puxando a linha.
Com um retrato de mãe e de madrinha
todas duas chorando a noite ingrata.
É hora que a Saudade mais maltrata
é um dia nublado à tardezinha!

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